domingo, 29 de março de 2009

I. O Paradigma Dominante

Copérnico e a sua teoria heliocêntrica. Kepler e suas leis sobre as órbitas dos planetas. Galileu e seus estudos sobre a queda dos corpos. Newton e sua grande ordem cósmica. Bacon e seu empirismo. Descartes e o Cogito. Todos cientes de que o que os separava do saber aristotélico dominante não era, tão somente, uma melhor visão do real, mas uma nova visão de mundo. Combatentes apaixonados da Revolução Científica do século XVI, lutavam contra o saber autoritário e dogmático do medievo.
Esta ruptura aponta para uma forma de conhecimento embasada no espanto do sujeito perante suas próprias descobertas, fundando um modelo de racionalidade desenvolvido, inicialmente, no domínio das ciências naturais. Entretanto, tal racionalidade científica, por pretender-se universal, é uma racionalidade totalitária, visto que nega o caráter de conhecimento verdadeiro a todos os saberes que não se pautam pelos seus métodos epistêmicos. Falamos não só de senso comum: a história, a filologia, a teoria do direito, a literatura, a filosofia, a teologia e todas as demais humanidades em voga.
Esse novo modo de encarar a vida, não obstante, lega-nos duas implicações fundamentais: primeira, a de que existem conhecimentos válidos (ou científicos) e conhecimentos vulgares (todos os demais); segundo, a suposição dum mundo dado passível de ser apreendido por um sujeito do conhecimento puro, o que implica uma separação entre a natureza e o próprio homem.
Personagem fundamental deste paradigma racionalista é a matemática, que representa, à ciência moderna, não tão somente um instrumento de análise. É, isso sim, a própria lógica de investigação da ciência, e ainda o seu modelo de representação da natureza. Conhecer, assim, torna-se quantificar, sendo o rigor científico aferido pelo rigor das medições! O que não é quantificável é cientificamente irrelevante, acarretando uma “desqualificação” das qualidades do objeto, uma redução da complexidade do mundo!
Estabelecem-se aspectos relevantes dos fatos a serem observados, retirando as complicações e acidentes dos mesmos, em busca duma simplificação dos fatos e duma regularidade dos fenômenos, tornando-os passíveis de medição rigorosa. A seleção do que deve ser ou não relevado nada tem de “natural”, sendo até mesmo arbitrária. É, justamente, nesta arbitrariedade que está erigida toda a nossa ciência moderna. As leis desta ciência são causas deterministas e mecanicistas, causas formais e pragmáticas que não pretendem compreender o real mas, simplesmente, dominá-lo! Quando perguntada sobre os fundamentos de seu rigor e de sua veracidade, argumenta demonstrando os seus êxitos manipulatórios.
O racionalismo cartesiano, o empirismo baconiano e as demais consciências filosóficas que embasam a ciência moderna condensam-se, no século XIX, no positivismo. O espírito científico, então, abre possibilidade para o surgimento das ciências sociais, nas quais distinguimos duas vertentes: uma que procura aplicar ao estudo da sociedade as leis das ciências duras e outra que busca uma metodologia própria ao estudo das humanidades.
A primeira vertente – física social – pressupõe que a ciência natural é um modelo de conhecimento válido, senão o único! Destarte, procura estudar os fatos sociais como fenômenos naturais, reduzindo-os às suas características observáveis e, principalmente, mensuráveis, tal qual Durkheim, que pesquisou a causa de suicídios não em motivações pessoais, deixadas nas costumeiras cartas de despedida, mas em regularidades, tais como o sexo, o estado civil e a religião.
A segunda variante assume-se como ciência subjetiva. Compreende os fenômenos sociais a partir do sentido que os atores conferem às suas ações, tornando necessária a utilização duma metodologia de investigação outra que não a das ciências da natureza. Saber intersubjetivo pelo conhecimento objetivo, descrição pela explicação, qualidade pela quantidade.
Esta última concepção de ciência social – embora antipositivista e fenomenológica – revela-se igualmente adepta ao modelo de racionalismo das ciências naturais, partilhando com estas a distinção natureza-homem e, como conseqüência, apresenta uma visão mecanicista de seu objeto de estudo, a saber, o ser humano. Ambas as concepções situam-se, ainda, no plano da ciência moderna, embora o segundo modelo apresentado represente, de certa forma, um sinal de crise no paradigma presente e – deveras – se nos revele como transição a algum paradigma vindouro...
SANTOS, Boaventura de Sousa; Um discurso sobre as Ciências; 3ª edição; São Paulo; Cortez Editora; 2005, pp. 20-40.

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