domingo, 29 de março de 2009

II. A Crise do Paradigma Dominante

Um problema lógico: como é que um observador estabelece a ordem temporal de acontecimentos no espaço, separados por distâncias astronômicas? Einstein responde: por medições da velocidade da luz, pois parte do pressuposto de que não há velocidade superior a esta. No entanto, o próprio Einstein cai num dilema: para afirmar a simultaneidade de acontecimentos astronomicamente distantes, deve-se conhecer a velocidade de tais eventos; mas para medir a velocidade de tais eventos, deve-se constatar a simultaneidade dos acontecimentos. A solução, proposta pelo próprio Einstein: a simultaneidade não pode ser verificada mas, tão somente, definida!
O princípio da incerteza é a constatação de que não se pode reduzir os erros de aferição da velocidade sem aumentar os erros de medição da posição duma dada partícula, e vice-versa. Heisenberg demonstra, assim, que é impossível medir, ou mesmo observar, um objeto sem nele interferir, alterando-o.
Einstein na macrofísica, Heisenberg na microfísica. Ambos nos lançam a idéia de que o que conhecemos da natureza é só o que nela introduzimos! Não havendo simultaneidade ou medidas universais, o absolutismo espaço-temporal newtoniano perde sentido. A própria distinção natureza-homem – objeto e sujeito – abala-se em sua frágil dicotomia, tomando forma de continuum.
Já Godel apresenta e representa uma terceira condição na crise do paradigma dominante. Se as leis das ciências duras fundamentam seu rigor na matemática formal, o teorema da incompletude e os teoremas sobre a impossibilidade nos mostram que o próprio rigor da matemática carece de consistência!
Os avanços na microfísica, na química e na biologia dos últimos vinte anos figuram como quarta condição teórica. Haken, Eigen, Maturana e Varela, Thom, Jantsch, Bohm, Chew. Nomes e mais nomes, pesquisas e mais pesquisas das quais escolheremos Ilya Prigogine a título de exemplo. A teoria das estruturas dissipativas, de Prigogine, estabelece que, em sistemas abertos, a evolução explica-se por flutuações de energia – imprevisíveis – que pressionam o sistema para além de seu limite máximo de instabilidade, conduzindo-o a um novo estado macroscópico, irreversível. Troca-se a estabilidade, o determinismo e a ordem pela história, pela imprevisibilidade e pela criação. Prigogine, sem querer, traz de volta conceitos aristotélicos como potência e virtualidade, excluídos do pensamento pela Revolução Científica do século XVI, ávida por simplicidade e generalização.
A formulação de leis para a natureza baseia-se na idéia de que os fenômenos só dependem dum dado conjunto de condições, prontas para observação e medida. Esta simplificação legal acarreta uma simplificação da própria realidade, impedindo-nos de vislumbrar conhecimentos outros para além dos limites arbitrários fixados. Uma tal reflexão vai além da epistemologia tradicional, abarcando condições sociais, contextos culturais e instituições. A própria idéia de causalidade fica abalada, sendo substituída por modelos outros, como sistemas, estruturas ou processos. A relação causa-efeito só funciona num conhecimento que busca, unicamente, manipular! Medindo, inclusive, o seu êxito por esta intervenção mesma! Causa é, simplesmente, tudo aquilo que podemos controlar!
Por fim, vale cutucar a idéia de autonomia, neutralidade e desinteresse do e no conhecimento científico. A ciência causalista, moderna, tornou-se indústria, comprometendo-se com o poderio econômico, social e político, delineadores decisivos das prioridades científicas.
Tais condições – teóricas e sociais – referentes à ciência moderna não nos obrigam a abandonar o racionalismo nem nos condenam ao ceticismo desolador. Surge em nós, isso sim, a necessidade em abandonar os lugares estabelecidos de outrora, os sistemas, teorias e métodos epistêmicos que não mais satisfazem, em busca de – porque não? – paragens mais aprazíveis e aventuras mais encantadoras...
SANTOS, Boaventura de Sousa; Um discurso sobre as Ciências; 3ª edição; São Paulo; Cortez Editora; 2005; pp. 40-59.

Nenhum comentário: